INDIGENTE DA VIDA E DA MORTE
Quero contar minha história aos que tiverem a paciência de
ler minhas palavras.
Minha primeira
lembrança é de uma enorme casa cheia de crianças, as vezes uns iam e nunca mais
voltavam, achava aquilo tudo muito estranho. Com o passar do tempo vim a saber
que se tratava de um grande orfanato numa grande cidade do nosso país. Era
dirigido por freiras, umas boas e outras nem tanto.
Muitos nunca
devem ter ouvido falar na “roda dos enjeitados”, já que isso não é mais usado.
Funcionava mais ou menos assim: a mãe que por motivo ou outro não desejava a
criança recém nascida, colocava-a nessa roda, tocava um sino e se afastava, minutos
depois uma das freiras ia ao local rodava a roda para o lado de dentro e
recolhia o infeliz enjeitado que ali era depositado.
Foi assim que
fui parar naquele orfanato, onde passei alguns anos da minha curta vida.
As crianças
ali deixadas eram dadas para adoção, daí a lembrança de ver uns indo e não
voltando, esses eram os que com sorte conseguiam um novo lar. Muitos eram
verdadeiros filhos de coração daqueles que os adotavam, outros eram adotados
com intuito de serem empregados da família adotante.
As crianças mais
bonitas de pele alva eram as primeiras a serem escolhidas, nós os de cor negra ficávamos
sempre a esperar alguém que pudessem nos tirar de lá.
A vida corria
assim naquele lugar que chegavam e saíam crianças, vivi ali até completar uns
13 anos, quando um casal com cara de bons amigos me levou em adoção, naquele
tempo as adoções não tinham a burocracia e o acompanhamento que tem hoje,
alguém ia lá te escolhia e te levava.
Minha alegria
foi enorme quando fui escolhido, achei que o meu grande dia houvera chegado,
que ilusão! Logo que cheguei na nova casa fui levado a um quarto insalubre, era
ali que eu viveria. Descobri que eu seria naquela casa um serviçal para fazer
serviços de jardinagem, de pintura, enfim o que precisasse.
Eu era
acordado cedo pela dona da casa que já vinha com uma lista dos afazeres daquele
dia. Me levantava sonolento e se resistisse e voltasse a dormir era tirado da
cama com bofetadas na cara. Minha alimentação era restrita, não me davam o que
os filhos dos donos da casa comiam, os via se fartarem e pra mim somente os
restos ou que a empregada velha da casa conseguia esconder e me dar, ali era a
única pessoa que tinha pena de mim. Escola não frequentava, o que aprendi foi
no orfanato.
Trabalhava o
dia todo fazendo serviços que cabiam a um adulto, não a mim criança ainda e
além de tudo com pouca saúde.
Quando
terminava os serviços podia tomar frio, banho quente era luxo. Me davam um
prato de comida e só então podia me recolher ao meu pobre quarto onde um
colchão era colocado no chão fazendo as vezes de cama. Muitas vezes chorava
tanto que o sono e o cansaço me venciam a aí acordava para meu e exaustivo dia.
Quando adoecia
era horrível, muitas vezes achavam que era uma farsa e mais ainda eu sofria, só
quando tive uma febre de delirar é que me deixaram ali naquele quarto e quem me
ajudava era a velha empregada que era tratada como eu. Me contou certa vez que
ela também fora adotada pela mãe da dona da casa para ser empregada da família.
A vida dela era tão dura quanto a minha, só sofrimento.A diferença é que ela
era muito bondosa e se conformava com isso e dizia até gostar dos patrões.
Quando fiz 17
anos comecei pensar em sair dali, um dia me deram um dinheiro para fazer um
mandado. Sai como de costume, coloquei o dinheiro no bolso e nem olhei para traz,
com a roupa e aquela quantia sai dali para nunca mais voltar.
Passava dias
nas ruas a mendigar comida, me sentia muito humilhado, mas com o passar do
tempo tudo isso foi desaparecendo, comecei junto com outros moleques iguais a
mim mesmo a praticar pequenos furtos e logo me viciei em álcool, comecei a
cheirar cola de sapateiro, acabei entrando nessa vida sem volta, até procurar
por furtos maiores. Furtava, comia, cheirava cola e bebia e a vida ia seguindo.
Até que um dia
em num assalto mais ousado fui atingido por um tiro no peito. Havia sido pego
pela policia, terminava ali a minha existência carnal. Terminava ali uma vida
que eu nem sabia como tinha começado.
Ninguém
chorou, ninguém se lamentou, fui levado à terra como indigente. Indigente que
fui a vida toda.
Filho sem mãe,
rapaz sem carinho.
Vida triste,
podia ter tomado outro rumo? Sim poderia, mas imaginem que isso não é fácil.
Por isso antes de julgar pensem em quantos sofrem e acabam como eu por pura falta
de ajuda.
Um indigente
da vida e da morte.
Psicografia
recebida em 2015.
Médium: Débora S. C.